Review, por Ben Santana
Livros teóricos sobre quadrinhos são, na maioria das vezes, escritos por e para iniciados. Você é um leitor e de repente não se satisfaz mais com as histórias publicadas em seus títulos favoritos. Você quer mais, quer saber os meandros da criação dos mesmos, quer saber como as engrenagens funcionam. Vários destes livros estão disponíveis no mercado brasileiro, coisa que seria impensada alguns anos atrás. Do Desvendando os Quadrinhos de Scott McCloud até o belíssimo Homens do Amanhã, de Gerard Jones, livros sobre quadrinhos estão lado a lado com os últimos encadernados de X-Men e Batman nas grandes livrarias do Brasil.
McCloud escreveu Zot!, um título que, apesar de ser muito bom, nunca teve o impacto que os grandes personagens tiveram no inconsciente coletivo dos leitores de quadrinhos. Jones, por sua vez trabalhou com os tais grandes, escrevendo desde a Liga da Justiça até Batman. São ótimos escritores, mas são discretos, preferindo que suas criações ganhem os holofotes.
Isso não ocorre com Grant Morrison. Desde que ele chegou ao mercado americano, com o que foi talvez a sua melhor obra, Animal Man, ele chegou com o pé na porta. O que era para ser uma minissérie em quatro números ganhou vinte e seis escritas por Morrison. Foi ali que ele começou a desenvolver temas que iam do sublime até o completamente enlouquecedor. Mas desde o início ele mostrou um domínio da linguagem que estava trabalhando (os quadrinhos) assim como sua disposição de subvertê-la. E deixar bem claro que o criador é tão importante quando a criatura. Animal Man 26 tem Morrison escrevendo o próprio Morrison, dizendo a Buddy Baker que ele era o responsável por suas agruras.
Subverter. Esse é o mote de Morrison. Mesmo em títulos mainstream como Justice League, Batman e X-Men, ele atirou nas proverbiais vacas sagradas e imprimiu sua visão de personagens icônicos. Se fosse um escritor menos talentoso não teria conseguido. Nem teria sido permitido.
The Invisibles, sua obra mais pessoal é uma mistura de milenarismo, com Crowley, magia do caos (a qual ele jura praticar) e experiências pessoais sob efeito de poderosos alucinógenos. Incompreensível muitas vezes, The Invisibles serviu para Morrison vender o que ele mais conhece: o próprio Grant Morrison e sua filosofia de vida.
Então, um homem assim seria capaz de escrever uma história sobre os quadrinhos? E os leitores estariam dispostos a lê-la? É claro. O fator Morrison pesa em qualquer coisa. E diferente dos ótimos McCloud e Jones, Morrison tem um apelo pessoal inegável. Ele se tornou um personagem, criado (é claro) por ele próprio.
Supergods (Spiegel & Grau, 2011) é o livro que Jack Kirby escreveria sobre os quadrinhos no início dos anos setenta. Pessoal e ao mesmo tempo extremamente informativo, em suas quase quinhentas páginas vemos a visão morrisoniana do que é a indústria dos quadrinhos e seu impacto na sociedade de consumo americana (e em menor escala no resto do mundo).
Morrison foi criado com os quadrinhos americanos que chegavam a Glasgow e eram devorados por meninos de sua idade. Quadrinhos da Era de Prata da DC, na sua maioria. Esses quadrinhos calaram profundamente em seu inconsciente, como na maioria das crianças da década de sessenta. Não preciso nem dizer que a parte mais divertida do livro é justamente sobre essa Era. Ele descreve com detalhes, por exemplo, as aventuras de Jimmy Olsen vestido de mulher, no que seria a primeira drag queen dos quadrinhos.
Supergods é extremamente pessoal, como já disse. Mas também é informativo. Morrison disseca, por exemplo, a capa de Action Comics de maneira brilhante. E coloca um ponto que poucos pensaram: a violência do Superman levantando um carro em um ataque de fúria. Hoje, todos sabemos quem é o Superman, e se ele estava fazendo aquilo, deveria ser por uma boa razão. Afinal de contas ele é o cara bonzinho. Mas em 1938, ninguém sabia quem era o Superman. Era um inimigo? Qual a sua motivação?
Coisas assim fazem que o leitor de Supergods levante os olhos do livro e diga: “Como eu não pensei nisto antes?”. E Morrison povoa as páginas de seu livro com insights deste calibre.
Para Morrison, os super-heróis são cíclicos e previsíveis. Ele mostra que eles, desde a sua criação, estão seguindo um padrão que retorna ao seu princípio periodicamente. E que isso não é necessariamente uma coisa ruim, muito pelo contrário. Sabendo como Morrison pensa, é muito mais fácil entender o que ele escreve. All Star Superman e seu trabalho na nova Action Comics são provas disso.
Sendo um livro pessoal, onde a indústria dos quadrinhos se mistura com a própria vida (e visão) de Morrison temos coisas interessantes. Por exemplo, ele mostra que ainda está extremamente ressentido com as acusações que sua graphic novel do Batman, Arkham Asylum era pretensiosa, acusações que o fizeram raspar seu cabelo e embarcar em uma viagem lisérgica ao redor do mundo. Ou seu feudo com Alan Moore, dizendo que Watchmen é tecnicamente brilhante, mas engessado em sua lógica extremamente rígida e fria. De novo, as tais vacas sagradas não estão nem um pouco seguras.
Certa vez, Grant Morrison disse que nunca escreveria uma autobiografia, pois ninguém acreditaria, já que ela se pareceria muito com uma história em quadrinhos. Pois em Supergods ele fez exatamente isso: uma longa autobiografia de um leitor que muitas vezes se confunde com os personagens que lê, e que anos mais tarde viria a escrever.
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