Código Da Vinci II: A revelação

Navegando pela Internet encontro muita coisa legal. Este texto curto, uma ficção escrita para satirizar o sucesso do romance Código da Vinci de Dan Brown é muito legal. Reproduzo-o, mas esclareço que não é meu. Um aviso: assim como Código da Vinci, este texto é uma heresia e brinca com conceitos importantes para diversas pessoas, se você é profundamente cristão não leia!


Diante do estrondoso sucesso do best seller de Dan Brow, “Código Da Vinci”, achei que já era hora de eu vir a público para dar fim à toda essa atmosfera de mentira e confusão levantada por esse livro.

Chamo-me João Paulo dos Santos Reis e, até o ano passado, mais exatamente até setembro de 2004, era um católico fervoroso e, digamos, profissional, visto que, como historiador, era membro do quadro de pesquisadores do Vaticano. Minha função consistia em procurar, em livros antigos e modernos, quaisquer referências a história da vida de Jesus.

Quando o romance de Dan Brow atingiu o recorde de vinte e cinco milhões de cópias vendidas, o cardeal Angelo Romani convocou todos os pesquisadores do Vaticano para uma reunião secreta em seu escritório, em Roma. Ele revelou que o próprio Papa confessara estar extremamente preocupado com a propagação da teoria profana de que Jesus teria se relacionado sexualmente com Madalena e gerado um filho – que é, afinal de contas, o grande segredo que os maçônicos do livro de Brow, entre os quais o próprio Leonardo Da Vinci, guardavam com tanto cuidado, ou nem tanto cuidado assim, já que muitos morreram em mãos de fanáticos católicos que buscavam, a todo custo, destruir os indícios dessa teoria.

O cardeal nos incumbiu, portanto, da delicada missão de desconstruir e desacreditar totalmente a versão apresentada por Dan Brow. Com base no vasto material bibliográfico acumulado pelo Vaticano em bibliotecas do mundo inteiro, deveríamos sair pelo mundo, como novos evangelistas, dando entrevistas, escrevendo artigos, divulgando a versão oficial da Igreja: a de que Jesus nunca havia conhecido, no sentido bíblico, mulher alguma.

Eu, juntamente com uma pesquisadora espanhola, Josefa Rodriguez, uma linda mulher por sinal, fui a biblioteca católica de Madrid, uma das melhores do mundo, para reler algumas obras antigas. Tinha em mente alguns argumentos com os quais pensava arrasar sem dó nem piedade o romance de Brow. Indignação não me faltava. Há tempos vinha observando, com furiosa irritação, a maneira oportunista e cínica como esses escritores se utilizam da religião, sobretudo da católica, para vender livros e enriquecer. Com o islamismo não fazem isso, é claro, por medo dos aiatolás e seus tentáculos terroristas.

Pois bem. Eu e Josefa, passávamos as tardes na biblioteca e as noites em bares e restaurantes da capital, bebendo e conversando sobre o que tínhamos lido, procurando estimular um ao outro a fim de que nossos artigos possuíssem energia e carisma suficiente para causar queda nas vendas do famigerado Código Da Vinci. Graças a Deus, a Igreja não proíbe o uso do álcool – muitos padres são inclusive alcoólatras -, pois me seria impossível passar mais de vinte anos pesquisando sobre a bendita vida do Salvador não fossem os porres homéricos que me permitiam esquecer por instantes toda aquela enjoada carolice.

Josefa e eu nos tornamos amantes e, após duas semanas de tórrida paixão, decidimos nos casar. Fui à casa do pai dela, um venerando filósofo aposentado que morava numa ampla e arejada casa nos subúrbios de Madrid. Nessa tarde, Dr. Fernando Rodriguez, disse à filha que pretendia ter uma conversa a sós com o futuro genro. Josefa concordou tranquilamente e respondeu que aproveitaria para ir ao salão de beleza preparar-se para o grande momento, que havíamos marcado para dali a alguns dias. Como podem ver, tínhamos pressa.

O pai de Josefa conduziu-me a sua biblioteca, fechou a porta e sentou-se na cadeira atrás da grande mesa de mogno maciço. Sentei-me numa das poltronas. Ele era um homem muito gordo e alto, com um olhar duro que me deixava pouco à vontade. Pediu que eu fosse até o bar, num dos cantos da sala e servisse uma dose de uísque para mim e para ele. Senti um alívio indescritível ao fazer isso, pois temia uma conversa desagradável e, pelos preâmbulos etílicos, não o seria. Ou se o fosse, ao menos não o seria a seco.

Levei o copo até ele, fizemos um brinde e voltei a me sentar. Ele continuava em silêncio, cofiando a barba branca, com expressão embaraçada. Enfim falou:

- Você sabe como Josefa conseguiu o emprego de pesquisadora do Vaticano?

- Imagino que ela tenha herdado do senhor o gosto pela pesquisa dos textos sagrados. O senhor também era pesquisador do Vaticano, não?

- Eu arrumei o emprego pra ela. Eu era o chefe do departamento de pesquisa histórica do Vaticano. Até que fui afastado.

- Afastado? Josefa não me disse isso. Ela contou que o senhor se aposentou...

- Ela nunca soube a verdade.

- Verdade? Que verdade?

Ele não respondeu. Ficou em silêncio, bebendo o uísque e estudando-me com seus olhos penetrantes. A essa hora, eu estava terrivelmente constrangido. Por que cargas d’água ele estava me contando segredos desse tipo? Após um tempo, voltou a falar:

- Eu pensava que iria morrer com esse segredo. Mas não suporto mais. Quando Josefa contou-me que iria se casar com um pesquisador do Vaticano, pensei: é uma grande ironia do destino. Ou então é um sinal de Deus para que eu ponha um fim a essa gigantesca farsa. Não quero ver minha filha e meu genro vivendo num mundo de fantasia. Vocês têm direito de saber a verdade. No entanto, não tenho coragem de dizer isso diretamente a Josefa. Depois de toda a formação católica que lhe dei, ela não suportaria ouvir isso de mim. Mas você... você saberá dizer a ela.

Será que o homem tinha enlouquecido?, pensei, inquieto, remexendo-me na poltrona. Ao mesmo tempo, uma curiosidade crescente fazia-me cócegas no cérebro. Não disse palavra, apenas assentei com a cabeça e esperei que prosseguisse.

- Josefa me contou sobre a nova missão de vocês, de desqualificar o trabalho do jovem americano que escreveu esse livro...

- O Código Da Vinci?

- É. Estou sabendo de tudo. Não o que o cardeal Romani lhes contou, é claro. Mas tudo, tudo mesmo.

- Como assim?

- Esse Dan Brow recebeu dez milhões de dólares do Vaticano para escrever o livro.

- Quê?

- É isso mesmo que você ouviu.

- Mas como? O Papa está furioso com esse livro. Nós fomos contratados, como o senhor mesmo disse, para desqualificá-lo.

- É tudo uma grande farsa. Eles querem desviar o mundo da verdade, essa sim muito mais terrível que esse segredinho sobre o filho de Jesus, aliás uma grande mentira. Jesus nunca teve filho.

- Eu sei. É sobre isso que estou escrevendo.

- Você não sabe de nada. Jesus não teve filho. Mas teve um amante. Esse é o grande mistério por trás da história de Cristo.

- Quem era ela?

- Você não me ouviu? Eu disse que Jesus tinha um amante. UM AMANTE. Um homem.

- Ãhn? – Dei um riso nervoso. Bem que Josefa me avisara que seu pai era meio excêntrico.

- É, um amante. E essa história estava pra ser publicada por um escritor egípcio quando o Vaticano mandou assassiná-lo, em agosto de 2001. Logo depois contratou esse rapaz, esse americano, para escrever um romance sobre o suposto relacionamento de Jesus e Madalena, que serviria para blindar o imaginário coletivo com a imagem de um Jesus másculo, viril, heterossexual...

- Ah ah, faz sentido – quase sem me dar conta, eu havia secado o copo de uísque. Fiz um gesto pedindo autorização para pegar mais.

- Por favor, sirva-se. Pegue pra mim também.

Servi a mim e a ele novamente, e voltei ao meu lugar. Parecia estar sonhando. Diante do silêncio dele, perguntei:

- Me desculpe a pergunta, mas o senhor tem provas disso?

- Claro que tenho, não cometeria a loucura de lhe contar se não as tivesse.

- E eu... poderia vê-las?

Nesse momento, escutamos a campainha. O velho teve uma súbita expressão de horror e falou, gaguejando:

- Eles descobriram! Mas como? Não é possível! Não, isso não. Não podem ter instalado microfones por aqui! Só se Josefa...

Não preciso dizer que, com isso, declarei a mim mesmo que estava diante de um sujeito totalmente paranóico. Todavia não era o caso, conforme os fatos em breve revelariam. Ele ergueu-se, pálido, saiu do escritório e foi até a sala abrir a porta. Ao passar por mim, entregou-me um bilhete, sussurrando-me: “guarde isso com cuidado, leia depois. Agora, esconda-se, rápido”. Guardei o papel no bolso, levantei-me também e fui atrás dele. Como que por instinto, mantive-me meio escondido atrás da escada que dá para o segundo andar, próximo à cozinha e à porta dos fundos. Podia ver a porta da frente e ouvir o que eles falavam.

- Filha? Você? Por quê?

- Você traiu a Igreja, pai.

- Mas...

Não pôde dizer mais nada. O sujeito alto que acompanhava Josefa apunhalou-o no peito, bem no coração. Fernando desabou no chão sangrando muito e já sem vida. Os dois entraram apressadamente na casa, em direção ao escritório. Eu já tinha me ocultado dentro da cozinha, e saí pelos fundos.

Pus-me a correr como um louco, chorando de raiva, medo e tristeza. Em questão de segundos, havia visto um bom homem morrer nas mãos da própria filha, me decepcionado com a mulher ao qual dedicava tanto amor e, o que é pior, perdera totalmente a fé na Igreja e na lenda de Jesus Cristo.

Sentado num banco de praça nos arredores de Madrid, puxei do bolso o bilhete que o pai de Josefa havia me entregue antes de morrer. Estava escrito o seguinte:

“Caro João. O amante de Cristo era Judas Escariotes. Por isso ele é tão odiado pela Igreja. Você poderá encontrar sinais disso nas obras de Rubens e Caravaggio. Agora, desapareça. Troque de nome e profissão. Faça plástica no rosto. Agora que você sabe a verdade, e eles sabem que você sabe, eles irão te perseguir até o fim de sua vida”.

É isso. Hoje eu moro aqui, nessa pacata cidadezinha, cujo nome não posso revelar por razões de segurança, e estou escrevendo um livro chamado: “O amante secreto de Jesus”, o qual penso publicar em pseudônimo e, com isso, ficar milionário, superando o sucesso daquele farsante. Sei que corro risco de vida e tenho muito medo. Mas tenho um bom estoque de uísque para aliviar-me os temores. Caso me encontrem, morrerei bêbado. Maiakóski dizia: “melhor morrer de vodka do que de tédio”. A minha versão é: “melhor morrer de uísque do que de medo”.

Por Miguel do Rosário