As tentativas de abolição da cronologia (I)

Desde o início dos anos 1.980 os quadrinhos tentam revolucionar suas continuidades de modo a fazer o leitor entendê-las. Houve grandes projetos para isto, mas o maior projeto é imperceptível ao leitor: ao trocar uma equipe criativa raramente se dá prosseguimento às tramas anteriores, preferindo iniciar novos arcos e macro-arcos. Com isso quero dizer que mais significativamente do que “Crise nas Infinitas Terras”, “Homem-Aranha: Gênese”, “Heróis Renascem”, “Universo Ultimate Marvel” e outros projetos, a mudança da equipe de criação leva os heróis para um novo caminho. São raríssimos os casos como o de Ed Brubacker que começou sua série de histórias do Demolidor resolvendo problemas do autor anterior, Brian Michael Bendis. Alguns diriam que Bendis conversou com Brubacker e este segundo preferiu dar seqüência aos eventos, eu por outro lado acho mais relevante lembrar ao leitor que Brubacker preferiu dar seqüência; uns mais afoitos diriam, no entanto, que a Marvel, a poderosa editora, preferiu não fazer uma ruptura, e assim além que escolher um artista competente que se submetesse à continuar a narrativa ainda aceitasse um desenhista que tinha as mesmas características de desenho do anterior, diminuindo assim, o impacto de mudanças, que geralmente afasta muitos leitores, ao mínimo.
A cada geração de roteiristas surgem novos fatos interessantes e são corrigidos outros tantos, que eram bons mas não estavam bem narrados. As correções são tantas que às vezes esquecemos qual editora é mais tradicional ou mais arrojada. “Bizarro”, um exemplo clássico já teve várias correções. Surgiu simplesmente como uma cópia imperfeita do Superman, conceito geral que a bem da verdade, permanece até hoje. Mas suas reais características modificam-se com os anos. Originalmente era, em última instância, um alienígena, tal qual o Superman – ainda que fosse este último bizarramente invertido. Reformulado tornou-se um clone. Na verdade, uma série de clones que algum cientista maluco tentava fazer do Superman, mas não conseguindo codificar seu gene alienígena, gerava uma imperfeição. Este conceito permaneceu por anos, até que Jeph Loeb em “Imperador Coringa”, fez uma nova versão mais próxima da original, ainda que a origem dela fosse mística: Coringa com os poderes do duende da 5ª dimensão Mxypltk cria uma cópia invertida do herói. Mais recentemente, após Crise Infinita (2005/06), no entanto, o Bizarro é simplesmente o mesmo de suas características originais com direito a um mundo quadrado e cópias imperfeitas do casting do Superman!
Não há uma obrigação real com o quê foi escrito, e variando com o formato da história até mesmo as “verdades absolutas” dos personagens podem alterar. Um exemplo ínfimo disto é a razão para os pais de Bruce Wayne (identidade secreta do vigilante Batman) terem levado-o ao cinema. Existe uma história pós Crise em que o autor Jim Starlin estabelece que foi um pedido de desculpas por um tapa provocado por uma crise na bolsa. Grant Morrison, autor de origem escocesa, em “Gothic” já argumenta que o menino foi matriculado em um internato e foi resgatado devido a maus tratos; ao chegar em casa a família foi ao cinema. Enquanto alguns leitores – entre eles, eu – acham isto irrelevante para a história, outros tantos acham isto incômodo. Isto sem contar que o filme Batman Begins por sua vez preferiu levar os Wayne para a Ópera, mais condizente com sua posição social – porém fica estranho que a família vá de trem e não de táxi ou limusine, mesmo tendo um mordomo. A explicação para tal fato é que na origem Wayne não tinha um mordomo que o acompanhava desde a infância – outra explicação, porém seria mais simples: criado num meio de consumo de massa feito essencialmente para crianças o personagem não foi pensado para durar e nem foi calculado todos os problemas de sua origem extravagante. Até mesmo a recente série de animação para TV, Batman: The Brave and the Bold, no episódio 4 da 1ª temporada “The invasion of the Secret Santas”, se acha no direito de estabelecer uma nova variável e diz que os Wayne foram em uma sessão de cinema para assistirem o filme “The Mark of Zorro”, mas o jovem Bruce, aborrecido por um presente que não recebeu, decidiu voltar para casa, tendo os pais alvejados em um beco.
Pelo menos todas as origens modernas que tratam da sessão de cinema falam sobre o mesmo filme...