Devo ser sincero: não
imaginava poesia quando comprei “As crônicas marcianas”
de Ray Bradbury (Coleção Mundos da Ficção Científica
volume 16, Francisco Alves Editora, Tradução de José
Sanz, 1980).
Imaginava uma série de
contos fortes ou com aquela sensação tão comum à ficção
científica: às vezes parecem inconclusos.
Bradbury então
consegue tornar-se relevante ao estabelecer uma cronologia do
processo de colonização de Marte entre 1.999 e 2.026 e fazer isto
com uma inteligência e sensibilidade alarmante. Há marcianos, mas
de uma maneira bem diferente daquilo que estamos acostumados. Na
verdade, há duas raças de marcianos, e ambas conseguem serem
surpreendentes e saborosas enquanto leitura mesmo numa seara de tão
poucos bons frutos quanto histórias de colonizações: são
previsíveis e invariavelmente fazem paralelos com a Colonização da
América do Norte, em especial o Velho Oeste e as ferrovias.
(Chama tanta atenção
o padrão de marcianos que ele escolhe, que é surpreendente que
desde 1.958 a obra não sofra bem mais imitações.)
Dois contos me chamam a
atenção. O primeiro é “Junho de 2003 Um caminho no meio do
ar”, onde todos os negros dos EUA se vão para Marte. Lembre-se
o livro foi escrito nos anos 1.940-1.950 e lançado neste formato em
1.958 quando o preconceito e um semi escravidão racista ainda eram
condições bem comuns.
Outro é o conto
“Agosto de 2011 Os colonizadores”, que faço um extrato:
Os
homens da Terra foram para Marte.
Foram
porque tinham medo ou não, eram felizes ou infelizes, porque se
sentiam como os Peregrinos ou não se sentiam como os Peregrinos.
Cada homem tinha seu motivo. Estavam abandonando más esposas,
trabalhos ruins ou cidades odiosas. Chegaram para procurar algo,
abandonar algo, obter algo, cavar algo, enterrar algo ou livrar-se de
algo. Vinham alimentando sonhos modestos, grandes sonhos ou sonho
nenhum. Mas o dedo governamental apontava de cartazes em quatro
cores, em várias cidades: HÁ TRABALHO PARA VOCÊ NO CÉU: VISITE
MARTE! e os homens precipitaram-se. A princípio uns poucos, umas
dezenas, pois a maioria sentia-se muito enferma, mesmo antes do
foguete partir. E essa doença era denominada Solidão, porque quando
eles viam sua cidade natal reduzida ao tamanho de um punho, depois de
um limão, finalmente da cabeça de um alfinete, acabando por
desaparecer na esteira de fogo, sentiam-se como se nunca tivessem
nascido, nunca tivesse existido a cidade, como se estivessem em lugar
algum, rodeados de espaço, sem nada familiar, apenas outros homens
desconhecidos.
Uma clareza,
objetividade e poesia incomum à ficção científica com suas
histórias por demais surreais.
Um belíssimo livro.