Muitos resenhistas certamente darão foco no superlativo que é esta obra e a série a qual pertence. Certamente é um bom início para a resenha. Com 1.240 páginas na sua versão nacional “O caminho dos reis” é apenas o volume 1 de “Os relatos da Guerra das Tempestades”. Que por sua vez é uma série que faz parte de um universo maior do autor. Brandon Sanderson um autor que já trilhou por caminhos de séries longas – foi ele que encerrou “A roda do tempo”, baseando-se em anotações do autor original e sob o escrutínio da editora, anunciou que esta trama terá dez volumes, tornando-se certamente uma das maiores séries em termos físicos da literatura de fantasia apesar de que os leitores de fantasia modernos tem um pé atrás com séries que se anunciam longas.
Mas, apesar de longa, a trama de “O caminho dos reis” não tem nada de complexa. É uma história bem feijão com arroz contada de maneira hábil. Muito hábil. E é nisto que se destaca: a habilidade de contar uma história já contada e fazer o leitor se importar com o destino dos personagens.
A trama é dividida em quatro núcleos a saber: Kaladin é um soldado que foi escravizado e agora trabalha como carregador de pontes; Shallah Davar é a herdeira de uma família em decadência que pretende estudar com a irmã do atual rei, a senhora Jasnah; Dalinar Kholin é o tio do atual rei que está cansado da longa guerra e desejoso de mudanças, talvez a paz e, por fim, Szeth que é o assassino do rei, que também foi escravizado e continua seu caminho, costurando uma parte importante da trama.
No início da trama, o rei Gavillar é assassinado e os parshendianos assumem a responsabilidade pelo envio do assassino, apesar do acordo de paz estabelecido pelas nações. Isto inicia a “Guerra da Vingança” onde milhares de soldados que servem aos grãos príncipes são enviados para as Planícies Desoladas local onde as batalhas ocorrem. Estas planícies foram destroçadas e os blocos de terras tem uma distância física entre si. Para atravessar esta distância os exércitos usam pontes, que podem ser puxadas e manipuladas por animais ou por homens. Um dos príncipes, o grão príncipe Sadeas usa homens escravizados e isso dá a ele uma vantagem tática ao custo da vida dos carregadores, que como escravizados não tem nenhum direito sobre si.
A trama deste volume se concentra no sétimo ano da guerra. Kaladin é um jovem que foi escravizado e comprado para ser carregador de pontes. Odeia os “olhos-claros” e é tratado como traidor. O quê se supõe inicialmente é que tenha sido um soldado para algum nobre e que tenha tomado uma decisão difícil, que o tornou um traidor. De longe é o personagem principal, com mais página e mais tramas, pois sua história é contada no presente e em flashback desde a infância quando acreditava que receberia o treinamento de médico, mas vivendo em uma pequena cidade do interior sua família também teve dificuldades de lidar com o nobre local. Em seu núcleo há vários personagens que se destacam, especialmente outros escravizados com histórias ricas, mas poucos chamam tanta a atenção quanto a “espreno” Syl – neste universo há os “esprenos” que são um misto de espíritos primais semelhantes às fadas, às vezes visíveis para todos ou somente para aquele com o qual o espreno tem um vínculo. Há diversos tipos de espreno, como espreno do vento, espreno das infecções/inflamações, espreno da terra, entre outros. Em vários momentos a relação entre Kalandin e Syl lembra a de “Pinóchio” e “o Grilo Falante”. Como o livro é basicamente narrado a partir das evoluções de Kaladin e seu conflito com a instrução inicial de seu pai, que desejava que ele curasse/cuidasse das pessoas, há muito espaço para as reflexões que um conflito como este dá margem.
Nas mesmas Planícies Desoladas está Dalinar e seus filhos, com atenção especial para o guerreiro Adolin. Dalinar vive a culpa do sobrevivente. Quando seu irmão foi assassinado era um dia de festa e ele estava embriagado. Talvez por isto deixou o aspecto de “Espinho Negro” guiar seu coração em direção a uma guerra longa e onerosa – a questão da alimentação das tropas é resolvido misticamente com equipamentos chamados transmutadores, mas o reino está “abandonado” pois soldados e nobres estão nas Planícies. No atual momento Dalinar vê-se com visões que não sabe a origem e como elas ocorrem durante as grantormentas, crê numa origem mística. Tem delírios da época dos Cavaleiros Radiantes que protegiam a humanidade, mas a abandonaram. Estaria Dalinar louco? Deveria abdicar em favor de seu filho Adolin, um cavaleiro tão honrado quanto ele? Teria a família Kholin alguma relação com supostos e recentes atentados ao rei? Seriam estes atentados verdadeiros? Poderia Dalinar se unir ao príncipe Sadeas, um grande amigo do passado, mas agora distante, e assim unificar as tropas para fazer um ataque significativo ao inimigo?
Enquanto a guerra está estagnada nas Planícies Desoladas em outra parte do mundo Shallan Davar segue Jasnah Kholin para ser sua protegida. Shallan tem uma agenda própria, mas ao ser iniciada nos conhecimentos se redescobre. Sua família usava um transmutador para gerar minas artificialmente. Com a morte de seu pai, a possível falência da família e o fato que o transmutador se quebra ela sai em uma missão duvidosa para corrigir esta situação, permitindo ao leitor ter contato com Jasnah que estuda os “esvaziadores” uma raça que ameaçou o reino e que enfrentou os Cavaleiros Radiantes no passado, antes que eles abandonassem sua missão. Não é dado detalhes sobre os Cavaleiros Radiantes, mas as armaduras fractais existentes pertenciam à eles.
Vale o registro que a função da leitura e escrita neste universo é uma função feminina. O homens não leem, apenas as mulheres e há até conceitos “modernosos” como a “telepena”, que permite aos envolvidos a conversa à distância, mas submissos à presença de uma mulher capaz de fazer a leitura e transcrever a nova mensagem. Além de Shallan e Jasnah se destaca a mãe desta última, Navani Kholin a viúva do rei Gavillar, que terá um importante papel do processo de humanizar alguns personagens.
Por fim nos interlúdios temos narrativas bem curtas de Szeth, o assassino, que está escravizado e que, em função disto, continua o seu ofício, servindo a vários senhores, até que um senhor misterioso o toma para si pois percebe que poderá utilizá-lo para servir à sua própria agenda.
O desenho do cenário é grandioso e há dezenas de detalhes importantes, como a questão da leitura. Para mim é importante relatar que as moedas são joias irradiadas com energia das tempestades, sendo objetos de troca como também "lâmpadas". Há também a “grantormenta” que é uma tempestade gigantesca que cai regularmente – e aquela civilização tem um nível científico suficiente para prevê-la. As joias e alguns itens mágicos como a armadura e a espada fractal absorvem esta energia das tempestades – ou a armadura absorve das joias, que por sua vez absorveu das tempestades. A armadura mágica permite que um combatente se destaque e é um item raro, bastante desejado. A espada fractal, além de todas as características “positivas” das espadas místicas ainda tem o adicional de desaparecer e retornar após ser convocada. Sabe-se desde o início que o assassino do rei reteve a sua espada fractal e que a queda de Kaladin está relacionado de alguma maneira à posse de uma espada fractal. Assim a espada fractal é um item precioso, que pode despertar a ganância e orientar as ações de homens que deveriam ser honrados.
Ao longo das páginas o desenvolvimento da trama é constante e Sanderson tem a habilidade de criar capítulos onde individualmente as coisas acontecem, assim como nos fazer ter afeição pelos personagens. Todos importam, mesmo os coadjuvantes, e queremos que eles consigam sobrepujar suas provações. “O caminho dos reis” não é apenas um romance de abertura de um épico. É, por si só, um épico em si. Não deve ser encarado com um romance que “apenas” apresenta os personagens, até porque há personagens que são apresentados de forma mais intensa do que outros. É um romance que não glorifica a guerra, não a torna uma coisa nobre; pelo contrário. No romance percebemos que a guerra transforma os homens e os tornam selvagens, detestáveis e capazes de realizarem atos que os tornarão tão culpados quanto os inimigos que enfrentam. Claro, como ficção, exibe uma extirpe de seres humanos que ou são incorruptíveis ou tem em suas decisões erradas uma pureza moral superior.
Nota: 9/10.